segunda-feira, agosto 08, 2005

O Fugitivo - Parte 1

Lugar errado, na hora errada...

“Uma manhã fria de Outubro... Não digo que acordei para presenciar a geada sobre a rasteira e escassa grama que está onde deveria ser um jardim, porque nem sequer dormir essa noite eu consegui... Assim como as várias e várias outras. Noites passadas em claro, e antes passadas sobre a cama, pois nem me deitar há como, por causa dos pesadelos e do suor frio, fora os ataques constantes de febre. E antes fossem apenas esses os incômodos. Não consigo ver um farfalhar de árvores sem me imaginar sob a mira de alguém. Não consigo ver uma sombra sem colocar a mão sobre o coldre e esperar o pior. Não consigo ver uma jovem atravessando a rua próxima daqui sem ouvir dentro da minha cabeça o grito ‘Olhem! Ali está ele!’...
Não há mais porque ver essa manhã fria congelar o ar, e a fim de colocar meus pensamentos em outra coisa qualquer, me viro, apenas para encontrar a parede, num violento ajoelhar ao chão. Meu estômago se revira, e por mais que eu o suprima com minhas mãos, a dor não passa. Minha garganta queima, e ao mesmo tempo não deixa o ar chegar até mim. O olhar se turva, e o fervor sobe até minha fronte. Maldita doença que não me esquece!
Ouvindo o estrondo que causei, a jovem Sarah se levanta às pressas, somente com seus trajes de dormir, pouco se importando com qualquer etiqueta. Desde que tudo começou, ela nunca saiu do meu lado, nunca me deixou sob julgamento do tempo. Mesmo quando eu a expulsava, mandava-a esquecer que havia me visto. Algo em mim chama a atenção dela... Um sentimento que é recíproco, mas não posso arriscá-lo... Não agora...
Era Julho quando tudo começou. Um grande rico se mudou para a cidade, atraído pela febre do ouro, das casas noturnas que faziam sucesso. Ele já chegara causando impressões, e em menos de uma semana já tinha montado a maior casa de diversões que aquele lado da Califórnia já havia visto. Havia alguns muitos que faziam o grado desse forasteiro, pois com dinheiro compra-se tudo hoje em dia. Mas é como eu disse: alguns... Os outros eram donos de outros negócios na cidade, e que estavam perdendo os cintos para o mais novo morador. Perdendo o prestígio com o xerife, com o prefeito, com os outros ricos da cidade. Havia aqueles que não gostavam do ricaço apenas por inveja, ou por perderem seus lugares nas minas por causa das transações iniciadas por eles. E havia os poucos que não davam a mínima para o que estava acontecendo entre eles, e até onde eu sabia, eu era um deles...
O tipo de serviço que eu exercia era simples: escolta de comitivas, de viajantes, transporte de malotes de cartas e notificações de uma cidade para outra. Claro que havia seus perigos, ainda mais em um lugar onde os saques eram constantes. Mas quem disse que hoje um homem pode escolher o trabalho que vai fazer? Há comida a ser comprada, uma casa a ser cuidada, e pouco se faz com pouco dinheiro. Por mais que fosse um serviço difícil, era um serviço garantido: eu, em conjunto com outros poucos homens, éramos os únicos com disponibilidade pessoal para um serviço de tamanha periculosidade, e isso nos tornavam sempre a primeira opção.
Começo de Julho, mais exato em uma terça-feira, eu sou chamado por Teodor, o homem que negociava os serviços prestados, cuidava do nosso pagamento e dos esquemas de viagem. Ele chegou cedo em minha casa, dizendo que o tal ricaço, que atendia por Joshua, havia feito uma oferta por nossos serviços. Uma viagem para a cidade mais próxima, escoltando nada mais que o próprio contratante, e um conjunto de objetos de importância pessoal e contratos, de suma importância para seu portador. A viagem se daria em uma semana, e em três dias deveria me apresentar à Joshua, junto com meus companheiros. Serviço simples, e com metade do pagamento adiantado. Não hesitei em concordar.
A escolta seria formada por mim, mais três homens da companhia que Teodor comandava. Johnatan, Matheus e Rick, sendo o último o mais novo deles. Todos os três trabalhavam comigo a mais de dois anos na companhia, e serviços de escolta eram raros. Parece que nossa tarefa era nada mais que garantir passagem pela estrada. Vantagem? Muito dinheiro envolvido. Desvantagem? Proteger o tal de Joshua de qualquer coisa que viesse a tentar barrar a comitiva. Cowboys fora-da-lei querendo diversão, assaltantes típicos, saqueadores de estrada, coisas assim. Parecia a minha velha S&W Colt poderia não ser o bastante, apesar de que eu rezava para que eu estivesse sendo pessimista, e não vidente...
Ainda preocupado, resolvi chamar mais um para a viagem, um velho amigo meu. Antony, conhecido por alguns por “Espírito da Bala”. O nome veio por causa da sua famosa mira. Um homem de idade, de face marcada e dura, e cabelo já grisalho, já foi xerife, e quando se cansou, começou a trabalhar com as minas de ouro que se tornavam cada dia mais comum, e que era um antigo sonho meu. Arrecadou tanto que agora vive do dinheiro que surge do banco e do Saloom que gerencia. Mas nunca perdeu o gosto pela velha cavalgada, e por isso achei que fosse me acompanhar. Por causa dele já saí de vários apertos, e sempre que minha situação financeira apertava, ele me resgatava da fossa. Infelizmente ele não podia me acompanhar (ou não queria, mas não resolvi perguntar demais), pois estava numa época que seu negócio ficava impossível de ser dirigido só pelos empregados dele, e então ele ficaria. Uma pena.
Manhã de quinta feira, e teoricamente o dia de partida. A comitiva teve a adição de uma senhorita jovem e muito bela. Lembro que no dia ela usava um belo vestido azul claro abobado, e ri muito por dentro. Acho que ela achava que aquilo seria uma viagem de férias. Seu cabelo moreno estava preso em um coque, escondido em partes por um grande chapéu. Pelo que soube, era ela quem organizava os compromissos do tal ricaço, e também era parenta próxima. Talvez sobrinha. Típico de homem rico: não conseguir nem saber o que vai fazer numa manhã. Às vezes acho que dinheiro sobe rápido demais à cabeça das pessoas, e elas começam com frescuras assim.
Depois dos ajustes finais, carruagem carregada com os pertences e os dois passageiros de honra, chegara na hora de partir. No relógio de ouro de Joshua, constavam 8 horas da manhã. “Atrasados uma hora!” Ficava dizendo ele, por um bom tempo do percurso. Mais essa agora: além de fresco, tagarela. Nada que um pouco de paciência e um bom cigarro não apartassem. Hoje, doente como estou, lembro que o médico dizia: “Se tomar esses remédios sem parar com esse cigarro e as bebidas, não vai durar muito tempo!”. Tenho que me lembrar de dizer a ele um dia que se não fosse o tal cigarro, os problemas seriam bem piores de se resolver... Mas de vez em quando eu acho que ele tem razão...
Depois de três dias de viagem, muita reclamação dos dois passageiros, chegamos a uma floresta por onde a estrada passava. Já caía a noite, e o melhor a nosso ver era levantar acampamento. Joshua e Sarah não saíam de sua carruagem por nada, e talvez fosse bem melhor assim, pois muito da conversa dos homens que contrataram eram sobre eles. Durante o percurso fiquei sabendo que Joshua era outro que tinha feito muito dinheiro com ouro. Tanto que começou participar ativamente da política local. Porém era homem sem apoio prévio de qualquer pessoa influente da nossa cidade. E é estranho como dinheiro e políticas se combinam rapidamente: rapidamente, várias pessoas de menor posse ou influência começaram a formar a “banca de apoio” do senhor, e não demorou muito para que ele se tornasse uma pedra na bota dos velhos chacais que queriam o domínio da cidade só para eles. Não era de se estranhar. Com o jeito extrovertido e desmedido do Joshua, não deve ter demorado nada para que ele falasse e almejasse mais do que iriam permitir a ele.
Os turnos de vigia foram feitos. Eu seria o primeiro, depois Rick, Matheus, e por fim Johnatan, o mais velho, que precisava de mais descanso. Rick insistiu para que eu fosse o segundo ou terceiro, e quase cedi o lugar, quando notei que a tal Sarah estava sentada nas escadas de entrada da carruagem, aparentemente sem menção nenhuma de se recolher pra dormir. Eu não ia dar essa facilidade pro novato. Não mesmo.
O que seriam duas horas de vigia monótona se tornaram até prazerosas, com a companhia da elegante moça. Ela me contou bastante da vida dela, e fiquei sabendo que ela era realmente sobrinha do ricaço. A conversa, que inicialmente não prometia nada, levou quase todo o tempo da vigília, e Sarah se mostrava realmente curiosa sobre minha vida, vida solitária como disse a ela. Talvez contasse mais, se não houvesse interrupções. Talvez se fosse outro tipo de interrupção, que não uma bala atravessada na roda de madeira da carruagem.
Nesse instante, minha reação foi jogá-la de modo não-cavalheiro na cabine da carruagem. Pro inferno! Ela me perdoa depois. Sacando a arma, procurei a origem do tiro, e nesse momento, Rick já estava escondido atrás da árvore onde havia se encostado. Johnatan e Matheus também já haviam assumido posições. Sarah gritou histericamente, junto com seu tio, e mais tiros vieram. Não sei se dava graças à noite, que por um lado nos dava cobertura contra quem nos atacava, mas dava cobertura igual para eles.

- Que diabos é isso!? – Perguntou Rick, enquanto colocava o tambor de balas no revólver e procurava a origem dos tiros.
- Emboscada, novato. Não é tão difícil perceber. – Disse Johnatan, com um jeito frio, que podia aparentar calma, mas tinha um tempero de impaciência, com a situação e com Rick.
- Não comecem com isso! – Disse Matheus. – Deixem pra puxar o cabelo um do outro depois que resolvermos isso. Alguém viu quem está atirando?

Eu havia corrido para o outro lado da carruagem, e me deitei no chão. Achava que ali estaria salvo, quando mais tiros acertaram a roda que eu usava de cobertura. Inferno! Estávamos cercados. Gritei para os outros para que procurassem abrigo melhor, que estávamos cercados, mas não houve tempo para Matheus. Quando ele dizia algo parecido com “Não pode ser tão...”, uma bala o acertou de cheio na nuca. Rick, assustado e furioso, apenas marcou a direção do tiro e começou a disparar, mas logo tombou com um furo entre os olhos. Johnatan pulou para baixo da carroça, e eu o segui.

- Maldição! Que fazemos agora, Jake? Rick e Matheus já eram. Devem ser mais de cinco contra nós, e distantes de nós. Devem estar armados com alto calibre. E agora?

Sarah ainda gritava, e o tio dela só sabia gritas “O que está acontecendo!? Meu deus!”. Johnatan e eu ficamos em silêncio, e alguns passos vieram da mata. Vários passos. Talvez eles tivessem achado que estávamos rendidos, ou que tivéssemos fugido na escuridão da mata. Três homens vieram, com roupas pretas, lenços na cara e mantos nos ombros. Nada de lenços vermelhos, nem um sinal reconhecível. Achei que não fossem cowboys. Do outro lado da estrada vinham mais três, de mesma vestimenta. Um deles se apressou e abriu a carruagem, abrindo a cabine e retirando Joshua aos gritos de piedade da carruagem. Pelo outro lado, Sarah foi rendida por outro deles, enquanto o resto abusava do ricaço.
Johnatan já estava com o revólver armado e apenas esperando um descuido dos homens de preto. Eu já estava armado também, mas estava meio em choque com toda aquela situação. Não sei por que, mas tanto eu quanto John hesitamos ao ouvir os homens falando. Parecia que conheciam muito bem o alvo, o que fazia, e que estaria ali naquele momento, com aquelas pessoas. Emboscada era pouco. Aquilo era assassinato mandado! Droga! Sarah!

- Joshua Kenitt. Acho que nem todo seu dinheiro o salva agora, não é? Ele te deixa à prova de balas?
- Por favor! Piedade! Eu não fiz nada com vocês! Peguem meu dinheiro! É de vocês! Por favor!
- Claro que é nosso! Não somos burros como você! E é óbvio que não fez nada conosco, mas fez com outras pessoas. O novo prefeito, os agiotas da cidade... Você anda tirando o prestígio deles, sabiam? Minha sorte é que sua cabeça vai valer alto. Eles te mandam lembranças, Kenitt.

O barulho alto do disparo ecoa, acompanhando o grito de terror de Sarah, e o som surdo do corpo de Joshua caindo no solo mal pode ser percebido. Nesse momento foi a segunda hesitação, minha e de meu parceiro. Ambos olhamos um para outro, surpresos com o que ouvimos. Logo, as atenções se voltam para Sarah, mas dessa vez, eu não podia hesitar...

- Desculpa, madame. Nada pessoal. Você devia ter dado juízo para esse seu...

A voz dele é interrompida por outro disparo. John já estava a alguns pés da carruagem, e havia abatido o primeiro deles. Aproveitando da distração, saí em disparada, quase tropeçando sobre a própria Sarah. Uma troca de tiros infernais se iniciou. Um tiro de sorte, e mais um ia pro chão. John estava correndo para a mesma árvore na qual me escondi dos tiros, mas logo foi alvejado, e caiu sem vida no chão. Agora eram quatro homens muito bem armados contra um homem e uma moça histérica. Que eu podia fazer? Sarah não podia morrer, pois eu não queria que isso acontecesse. Eu não ia deixar, não mesmo. Mas as chances estavam contra mim. E agora?
Eu já estava rearmando meu revólver, quando galopes foram finalmente percebidos por todos. Dois tiros acertaram o mesmo homem, e um deles exatamente no coração. Por causa do tiroteio, ninguém havia percebido que tinha gente se aproximando. Um dos cavalos pula das sombras entre os “assaltantes”, e mais um deles cai, atropelado. Mais tiros e uma questão de tempo para que os outros dois fossem aniquilados. Não tinha dúvida de quem tinha sido autor do primeiro tiro: Antony!

- Jake! Você está bem? A moça parece que sim... Mas chegamos tarde! Deus do céu... Realmente era verdade...
- Do que está falando, Antony? Você sabia disso!?
- Fiquei sabendo, algum tempo depois que você partiu. Um dos homens do prefeito andou dando com a língua nos dentes. O palavreado difícil dele escondeu as verdadeiras intenções de muita gente, mas não escondeu de mim. Às vezes é bom ter um saloom. Nunca se sabe que tipo de surpresa você consegue. Daí foi uma questão de pressionar os capangas certos e acabei descobrindo dessa emboscada. – E nesse momento chegava o segundo cavaleiro, um dos homens de Antony. Lembro de tê-lo visto no Saloom uma vez. Ele não demorou muito, apenas desmontou de seu cavalo e começou a desmascarar os que estavam lá. Realmente, dois deles me eram familiares. Um era capanga do prefeito, e outro, de um dos maiores agiotas da cidade. É, eles estavam realmente magoados com Kenitt.
- Você precisa sair daqui, Jake! - continuou Antony. – Sua sorte pode não durar para sempre, e com certeza quem mandou esse ataque aqui sabe que eu estava atrás de vocês...

Nesse instante, mais alguns tiros começaram a ricochetear no solo, nas árvores, e na carruagem. Um deles acertou de cheio a perna esquerda do cavaleiro que acompanhava Antony. Apressados, nos escondemos atrás da carruagem. Dessa vez os tiros vinham da estrada, e não das matas. Realmente alguém sabia das intenções de Antony, e estavam aqui para garantir serviço. Que mas ia vir pra piorar?

- Jake, você precisa fugir. Pegue um dos cavalos e corra! Não dá pra voltar pra cidade pra provar pras autoridades a situação agora. Eles já mandaram capangas agora, e nenhum deles vai deixar a gente sair vivo daqui.
- Mas Antony, se fugirmos agora...
- Se você não fugir agora, não vai ter chance de ajeitar as coisas! Eles já tiveram seu alvo, e se você e a moça sumirem, eles não terão que se preocupar com testemunhas. Eles mandam e desmandam naquela cidade, Jake! Não há muita chance de sobrevivência!
- E você? Vai ficar aqui e dar uma de herói?

Antony riu sonoramente, e disse, enquanto carregava o revólver:

- Posso ser o “Espírito de Bala”, mas meu revólver ainda é limitado. Não faço milagres. Ainda... – Ele se levantou, chamando os dois cavalos que haviam corrido para as matas, e me entregou um deles. Aqueles que vinham pela estrada não avançavam mais. Deveriam estar esperando uma chance de nos pegar na fuga, enquanto atiravam. Com o mesmo olhar incisivo de sempre, Antony diz:

- Corra pela estrada. Depois de meio dia de viagem, siga pelo leste até achar um rancho. Lá mora um conhecido meu. Diga apenas que conhece. Eu vou te dar cobertura. E seja esperto! Não seja perseguido rapaz! Agora corra! Pega a moça e corra!!

Não demorou muito para que os dois salvadores se unissem a troca de tiros. Sem olhar para trás, montei rapidamente junto com Sarah e corri o mais rápido que o cavalo permitia. Sarah agora soluçava, e continuou assim por várias horas...

Que outra escolha eu tinha? Eu corri...”