domingo, junho 27, 2004

Dragão Negro - Nova Terra

“Eu estava vivo... Mas minha consciência estava abalada... Eu ouvia as queixas, as idéias... Mas não me mexia... Em pouco tempo consegui uma visão embaçada daqueles que me salvaram do inferno pantanoso... Homens com rostos irreconhecíveis, e vários deles... Apesar de ferido e tentando me levantar, nenhum parecia ter o verdadeiro intuito de me ajudar... A lama e as folhas podres cobriam minha armadura, e talvez seja isso que me salvara da morte: se me reconhecessem, provavelmente seria uma execução sumária...
Um deles pareceu criar um pouco de humanidade quando resolveu convencer os outros que deveriam levar o semimorto até a vila... Porém minha consciência se perdeu assim que decidiram por me levar... E no relances que tive, pude notar que a viagem poderia ter durado dias... Semanas... Montanhas, vales e florestas... Um caminho longo foi percorrido até chegarmos... Mas chegarmos aonde...?
Quando chegamos, eu finalmente recobrei minha consciência... Porém meu corpo estava completamente enfermo... As feridas não foram bem cuidadas, e provavelmente eu deveria estar com doenças inimagináveis por causa do pântano maldito... Ao chegarmos, fui colocado numa espécie de esteira de pano, estendido no meio do vilarejo... Todos me observavam, comentando o meu estado, se perguntando se eu estaria realmente vivo...
Uma jovem, a qual o rosto não consegui ver de primeiro instante por causa do meu estado deplorável, pareceu comovida com a minha situação, e trouxera a mim um pouco de água... Ah aquela água valeria mais do que qualquer remédio que poderiam ter me dado naquele momento... Límpida e refrescante... Creio que parte da vida que havia sido retirada de mim voltou apenas com aquela deliciosa água...
Porém, o ato de bondade dela me entregou... Ao que ela se levantou do meu leito, os homens se aproximaram, e um deles reconheceu claramente o símbolo que ostentava no peito de minha armadura manchada de sangue e lama... Recuando dois passos para trás, ele caiu sentado ao chão, brandindo que aquele era soldado do comandante dos exércitos invasores... Falava desesperadamente que não deveriam ter se aproximado tanto do pântano... Amaldiçoava-me, assim como os outros...
A senhorita estava paralisada... Porém, pude notar que ela mantinha uma expressão serena... Séria... Como se aquilo não fosse muita surpresa para ela... Mas o resto do vilarejo com certeza gostaria de ver esquartejado naquele mesmo local, e não sem razão. Então o veredicto foi dado: todos aí, principalmente aqueles que me acharam, queriam realmente a minha cabeça... Pouco a pouco cada um deles se aproximou, desembainhando facas e espadas...Porém, a senhorita serena se colocou entre eu e os homens do vilarejo, clamando que o sangue já derramado não seria vingado por mais sangue... Outra discussão se seguia... Que situação curiosa: por que ela me defenderia... Mas por que...?
Eis então que eles decidem deixar com que eu vivesse, mas sobre os cuidados daquela que me protegera... Disseram que qualquer coisa que acontecesse contra o vilarejo seria vingado com o meu sangue, em conjunto com o dela... E ela aceitava se colocar em risco a um estranho forasteiro... Por que isso!? Por que os homens não enfrentaram o desejo daquela mulher? Será que ela é tão importante assim?
Antes que fosse levado para a casa da pequena senhorita, eu já caía inconsciente novamente... Os poucos relances que tive de consciência foram sofridos... Um frio congelaste, seguido de um calor abrasador... Por várias vezes ouvia ela rezar junto com outras pessoas dentro do quarto onde eu me encontrava... Várias vezes ela gritou: “Tragam água fria! Ele está ardendo em febre!”. Por vezes, diziam que eu não passaria da noite que seguiria... Mas eu continuei...
Por vários dias a rotina das enfermidades seguia... Por vários dias as feridas não cicatrizavam, e me alimentar era completamente inútil, pois tudo que comia retornava... Uns me chamavam de teimoso, outros de guerreiro, outros ainda de ‘morto-vivo’... Porém nem eu, nem aquela me hospedava desistiam... Às vezes, nos relances de consciência durante a noite, eu a via deitada em meu leito, às vezes acordada, outras vezes vencida pelo sono... Será que realmente eu era digno disso?
Em uma certa manhã, eu consegui realizar um feito que não realizava a tempos: acordar... E com consciência... Meus pensamentos estavam mais perturbados e embaralhados do que o de costume... E meu corpo não era mais o mesmo, por razões claramente óbvias... Eu estava magro... Mal consegui me levantar e andar até a janela, mas nada que o esforço não resolveria. Assim que me apoio na janela, posso sentir o vento soprando... O campo verdejante que era cultivado pelos aldeões estava verde, e o cheio das plantas enchia o ar de vida. A luz do sol... Quanto tempo! O calor da luz... O brilho... Naquele momento as enfermidades que me cobriam desapareceram... Eu estava extasiado pela vida que encontrara naquele lugar.
Depois de algum tempo ali, parado, eis que entra no quarto quem que esteve cuidando de mim o tempo todo... Ela entra silenciosamente, com um estranho sorriso no rosto. Os olhos se cruzam e fixam, fazendo parecer uma eternidade o tempo em que ficamos olhando um ao outro, esperando o primeiro dizer algo. Foi nesse tempo no qual eu realmente vi quem era aquela pequena moça que cuidara de mim.
Por mais estranho que pareceu para mim eu fui o primeiro a falar algo...
- Ah... Obrigado, senhorita... Eu...
- Não... Você deveria estar descansando... Nem entendo como conseguiu levantar... Vamos! Deite-se1
- Mas eu estou bem... Não se preocupe...
- Olha... Seja lá o que você acha que é, você está na minha casa, e deve deitar!
Realmente, o rosto angelical escondia um gênio forte... Bom, já que estava na asa dela, o melhor era obedecer. Após de deitar, ela se sentou ao meu lado, e perguntou o que havia acontecido comigo. Eu respondi que para entender, ela talvez deveria saber quem realmente eu era... E ela apenas concordou com um movimento de cabeça...
As próximas horas foram apenas de conversa... A maior parte do tempo foi apenas com esse quem vos fala dizendo como tudo aconteceu, desde a noite amaldiçoada na vila... O estranho que ela parecia ouvir tão atentamente... Ás vezes eu achava que ela ignorava o fato de que eu já havia sido líder do exército inimigo... Mas... Na verdade acho que ela sabia desde o início... Assim que terminava meu relato, lágrimas já caíam por meu rosto... Estava claro, tanto para ela quanto para mim mesmo que eu me arrependia amargamente de tudo... Mesmo que me dissessem que eu havia sido controlado... Nada poderia retirar o fardo da culpa...
Ela me olhava fundo nos olhos, enquanto eu dizia, chorava e amaldiçoava... E então, com um movimento leve e quase bailado, ela estende a mão dizendo o que mudaria minha vida a partir daquele dia:
- Você sofreu o que nenhum homem poderia sofrer, e agora sofre mais pela culpa... Se você procura redenção, se procura fazer valer a justiça que tanto acredita, seu primeiro passo pode estar aqui... Se liberte dessa guerra... Procure a paz... Aqui... Conosco...
E foi a partir daí, por longos meses, que vivi com aquelas pessoas, naquele vilarejo, onde depois de encarar tanta morte e destruição, encontrei vida, perdão, redenção. Não foi simples de início me acostumar com uma vida singela e fazer com que os outros membros da vila acreditassem que eu estava procurando paz... Meu passado como líder de um exército havia sido encoberto, e como ele, minhas armas acabaram sendo encobertas pela poeira.E assim o tempo passou. Trabalhos em plantações, ajudar nos carregamentos, arar a terra, cuidar de pastos e gado, alegrar as crianças, tudo fez parte do processo. E assim, aquela pequena e rústica vila da terra de Thalaria, acabou se tornando o paraíso que minha consciência tanto procurava.”